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Francisca Carneiro Fernandes: “A vivência cultural aumenta os índices de felicidade e de qualidade de vida da população”

Francisca Carneiro Fernandes nasceu no Porto, em 1972, e licenciou-se em Direito pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Católica no Porto, em 1995. Foi, até há uns dias, diretora-geral da Unidade Orgânica da Cultura da Ágora – Cultura e Desporto E.M e é atualmente Diretora de Novos Projetos na área da Cultura do Município do Porto e, por isso, dedica a sua vida ao serviço público que define como desafiante e recompensador. Memórias dos seus tempos de estudante da Católica? “Foram anos muito felizes” e “há professores que nos marcam para a vida toda”.

 

O que é que recorda dos seus anos de estudante de Direito na Católica no Porto?

Foram anos muito felizes. Eu envolvi-me em tudo: no grupo de dança, no grupo de teatro, na Associação de Estudantes, no Grupo de Estudantes de Direito. Havia uma vivência universitária muito positiva e, também, há memórias muito boas com o nosso querido Pai Guerra, como chamávamos, carinhosamente, ao Professor Carvalho Guerra. Éramos uma família e vivia-se um grande ambiente de proximidade. Para além disso, a Católica tem professores, absolutamente, extraordinários que nos marcam para a vida toda.

 

Porquê a escolha pela Licenciatura em Direito?

Não foi uma decisão óbvia, porque surgiu de uma hesitação grande. Eu gostava muito do Direito e da questão da arte da argumentação, mas, simultaneamente, também gostava muito de arquitetura. Acabei por concorrer ao ano zero da Católica e fiquei muito entusiasmada. A partir daí, nunca mais tive dúvidas de que estava no caminho certo. Entusiasmava-me muito a escrita e os livros. Eu frequentava o Café Pinguim, um café de poesia e que tinha muitas pessoas ligadas ao Direito. A Literatura e o Direito sempre tiveram pontos de contacto muito fortes e isso sempre me agradou. Para além disso, sempre fui uma pessoa de causas, uma verdadeira ativista.

 

“O Direito é uma excelente base humanística de formação humana.”

 

É, atualmente, Diretora de Novos Projetos na área da Cultura do Município do Porto. De que forma é que o serviço público a desafia?

Costuma-se dizer que, quando se entra no serviço público, há uma espécie de bichinho que toma conta de nós. É uma coisa um bocadinho viciante, apesar de, por vezes, ser muito frustrante, porque a gestão pública tem entraves, dificuldades e muita burocracia. Mas o sentido de serviço público e de serviço à comunidade é algo muito recompensador e preenche-me imenso. Os desafios são imensos, mas a recompensa é sempre maior que qualquer dificuldade.

 

Como é que passa do mundo do Direito para o setor público na área da Cultura?

Eu trabalhava numa sociedade de advogados que tinha como clientes várias empresas culturais da cidade. No fundo, ainda que em funções diferentes, acabava por estar muito ligada ao setor. Há um dia em que surge um convite para eu ocupar o cargo de subdiretora do Teatro Nacional de S. João. Lembro-me que tive um bocado de medo do desafio, mas acabei por arriscar e, como se vê, nunca mais saí.

 

O curso de Direito permite essa formação abrangente?

O Direito é uma excelente base humanística, de formação de pensamento e de formação de estudo. É uma base muitíssimo boa, porque, no fundo, acho que é dos poucos cursos onde se pode ser quase tudo. Ao longo do meu percurso, tenho vindo a colecionar conhecimentos, mas a base jurídica da minha licenciatura está lá sempre e é essencial nas minhas funções.

 

Licenciou-se em Direito pela Católica em 1995. Em 2022, que expectativas tem relativamente ao curso?

Sente-se que há uma preocupação de evolução qualitativa muito grande e isso impressiona-me muito. Um bom exemplo é a preocupação que existe, atualmente, com os alunos que vêm do secundário e que precisam de apoio na adaptação ao ensino superior. Motivar os estudantes de hoje em dia é um grande desafio, na medida em que eles estão completamente expostos a diferentes estímulos e a muitas distrações. O curso, tal como o tenho acompanhado, tem ido pelo caminho certo, porque se orienta para ser capaz de entusiasmar os alunos para que eles consigam descobrir a sua vocação e se saibam agarrar a ela.

 

O que é que a entusiasma no mundo da Cultura?

Aquilo que é apaixonante no mundo das artes em geral é a possibilidade que nos dá de vermos o mundo de outra forma. É a arte que nos faz refletir e pensar nas coisas de uma forma diferente. Seja através do belo, seja através do feio, do que é mau, do que nos faz sentir determinadas emoções. Quando entramos num teatro ou numa sala de espetáculos, estamos a ver o mundo de alguma forma, estamos a ver uma forma de refletir o mundo.

 

“É através dos serviços educativos que se consegue promover a aptidão para o consumo cultural.”

 

Existe uma distância grande entre a Cultura e a sociedade ou estamos no bom caminho?

Estamos no bom caminho, apesar da evolução ser lenta. Eu gostaria que fosse muito mais rápida, claro, mas estamos num caminho gradual e muito positivo. As taxas de ocupação do Teatro Nacional de S. João e do Rivoli são um bom exemplo disto, porque superam os 80%. As pessoas percebem que há um trabalho de qualidade e, por isso, gostam de vir. e, lá está, tudo o que é bom vicia. A cultura tem esta dimensão que nos coloca a precisar dela. Quando se começa a gostar da emoção, da reflexão e até dos choques, começamos a perceber que precisamos, realmente, disto na nossa vida. Quando estamos cansados do trabalho e entramos numa sala de espetáculos tudo muda. É como entrar num outro mundo. Só quando nos deixamos entrar neste mundo é que começamos a perceber a falta que isto sempre nos fez. A vivência cultural aumenta os índices de felicidade e de qualidade de vida da população.

 

Onde é que acha que reside essencialmente o desafio da captação de públicos? Na programação ou na comunicação?

Acho que é um casamento entre tudo. A programação tem que ser eclética, tem que saber ler a comunidade. As comunidades são todas diferentes e programar para o Porto é, obrigatoriamente, diferente de programar em Évora, em Santarém ou em Castelo Branco. É muito importante saber como é que se conquistam e se fidelizam públicos e como é que se comunica. Há alturas em que é preciso comunicar muito e há outras alturas em que a comunicação cansa e é preciso deixar que sejam as pessoas a procurar. Diria que a resposta certa é um casamento entre diferentes fatores, porque o importante é encontrar o equilíbrio.

 

A função educativa dos projetos culturais é, também, uma preocupação?

Todos os projetos da Ágora têm serviços educativos e tem-se investido muito nisso. É através dos serviços educativos que se consegue promover a aptidão para o consumo cultural. O trabalho que se realiza hoje vai ser visto quando as crianças de agora forem também pais e estiverem a educar os seus filhos. É um trabalho a longo prazo que requer muita dedicação e compromisso e que deve ser valorizado. É, também, importante referir que o serviço educativo não tem de ser só para crianças. De forma geral, temos de educar os nossos públicos e derrubar alguns preconceitos. Há pessoas que passam no Teatro Nacional de S. João ou no Rivoli e acham que não devem entrar, porque consideram que não são espaços para elas. É preciso combater esse preconceito e derrubar determinadas ideias erradas.

 

“O boom cultural que existiu no Porto foi orientado no sentido certo e foi conseguido de forma consistente.”

 

Como é que descreveria o caminho que a Cidade do Porto tem feito no setor cultural?

Eu sou suspeita, não é? (risos) Vou falar em causa própria, porque trabalho no projeto do Dr. Rui Moreira há quase cinco anos, mas diria que aquilo que tem sido feito na cidade não tem praticamente comparação com mais nenhum caso no mundo. O boom cultural que existiu foi orientado no sentido certo e foi conseguido de forma consistente, o que significa que quando se for embora todos os projetos e iniciativas vão poder prosseguir porque estão devidamente ancorados. Esta cidade tornou-se muito melhor para se viver. A cidade melhorou incrivelmente e está repleta de projetos muito interessantes que não estão ligados unicamente a pessoas que já estavam habituadas a ter consumo cultural, mas, também, houve a preocupação de estender os benefícios do serviço cultural a outros públicos. Este trabalho é, absolutamente, essencial e extraordinário.

 

Será que é aquela pessoa que está sempre a desafiar os amigos e a família com programas culturais?

Não (risos). Aliás, os meus amigos costumam dizer-me, depois dos espetáculos decorrerem, “não me avisaste!”. Eu estou-lhes sempre a dizer que eles é que têm de ir à procura. As pessoas têm de se habituar a procurar. Se conseguem ir usualmente à procura de um determinado filme que querem ver, também têm de ser capazes de ir procurar a programação de uma sala de espetáculos. Habitualmente, não aviso ninguém, porque estou tão embrenhada no resultado final que é muito difícil ter tempo para andar a anunciar.

 

O que é que mais gosta na Cidade do Porto?

É a minha cidade e vai ser sempre a minha cidade. Gosto desta vida, deste movimento, gosto muito da revitalização que se sente, gosto de sair à rua e de encontrar sempre um amigo. Há uma dimensão fascinante na cidade: oferece-nos tudo sem ser demasiado grande, nem demasiado caótica. Para além disso, as pessoas são especiais. Nós, tripeiros, somos reivindicativos e gostamos muito do que é nosso. Valorizamos as boas coisas que temos.

 

Como é que definiria a Cultura do Porto?

Fervilhante, felizmente.

 

27-08-2022