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José Azeredo Lopes: “Através da guerra na Ucrânia estamos a testar o nosso modelo de relações internacionais.”

José Azeredo Lopes é docente e investigador da Escola do Porto da Faculdade de Direito. É, também, o coordenador do International Studies Programme (ISP), um mestrado inteiramente lecionado em inglês que reforça o caminho de internacionalização da Católica. Especialista da área Internacional, Azeredo Lopes conta-nos que este seu fascínio vem da consciência de que “o mundo é muito mais do que nós”. Apaixonado por gastronomia, confessa que uma das coisas que mais deseja é terminar o seu livro sobre a História da Gastronomia Europeia.

 

Que memórias guarda da sua infância?

Memórias muito felizes de uma família da classe média a viver no Porto. Ir à escola, ter amigos, fazer algumas patifarias. No fundo, só tenho recordações gratas. Sou, também, daquelas pessoas que conheceram um antes (da democracia) e um depois. Tinha treze anos quando se dá o 25 de abril. Foi uma altura, absolutamente, deslumbrante no Porto.

 

“A Católica representa para a cidade do Porto também uma revolução.”

 

O que destaca desses tempos?

Foi um momento extraordinário de abertura da sociedade, de discussão e liberdade, mas de alguns excessos também. No dia 25 de abril, a primeira grande notícia foi a de que não havia aulas, mas também a ideia de se falar numa revolução pela primeira vez – coisa que, para os mais velhos, parecia um pouco assustadora. Não se fazia ideia do que podia ser uma revolução. Esse período marcou-me muito. Apanho em plena entrada na adolescência um período dos mais entusiasmantes, mas, também, com algumas dimensões sombrias. Isto acaba por culminar no verão quente de 75, em que alguns liceus ficaram a ferro e fogo. Na altura eu estava no Liceu D. Manuel II (Rodrigues de Freitas) e foi aí que fiz algumas das grandes amizades da minha vida, do ponto de vista da solidariedade, mas também onde aprendi os valores da lealdade e do amor ao debate e à troca de ideias. Foram anos determinantes.

 

O curso de Direito da Católica no Porto inaugura em 1978 e fez parte da sua primeira turma. É o primeiro curso de Direito do Norte.

O Porto teve vagamente uma faculdade de Direito a seguir à República, de muito curta vida. O Governo deve ter achado que não éramos gente recomendável, gostávamos demasiado da liberdade. Portanto, a Católica, de facto, representa para a cidade do Porto também uma “revolução” simbólica. Finalmente, existia uma Faculdade de Direito no Porto e saiu-me em sorte fazer parte da sua primeira fornada. Durante décadas, estava cristalizado o dogma de que o Direito era em Lisboa e em Coimbra. A abertura da Católica teve um impacto muito relevante na Cidade que, hoje, se torna difícil de explicar, dada a multiplicação de ofertas, a liberdade de escolha, ou a possibilidade de se estudar no estrangeiro. Hoje, tudo isto é mais relativo (creio que ainda bem), mas na altura foi um acontecimento.

 

“Nunca tive dúvidas de que, para onde quer que eu fosse, o meu regresso era sempre aqui.”

 

O que é que mais o marcou ao longo do curso?

O que me marcou foram os professores. Eu gostava muito da área internacional e desde o início a escolhi. O meu grande destaque vai sempre para os professores. Por exemplo, Direito Administrativo é, para mim, uma área um pouquinho desinteressante. Tive, contudo, a sorte de ter um enorme Professor, Rogério Soares. Nunca me passaria pela cabeça (cada um é como é) investir no Direito da Família. E, no entanto, assistir às aulas do Professor Pereira Coelho era um momento de admiração intelectual muito particular e de respeito por uma capacidade de ensinar que nunca terei. O Direito, de forma especial, é influenciado pelas características do docente e eu tive um naipe de professores muito acima da norma.

 

Qual é a importância da docência na sua vida?

Gosto muito de ser professor e, neste momento, não queria fazer outra coisa. A docência foi sempre, desde que comecei a minha carreira e embora com saídas e regressos, o pilar central da minha profissão. Nunca tive dúvidas de que, para onde quer que eu fosse, o meu regresso era sempre para aqui.  Infelizmente, as pessoas têm dificuldade em compreender isso, porque fomos assistindo a uma degradação do conceito de professor. O professor tem, cada vez mais, um papel importante, até de um ponto de vista concorrencial. Mas, ao mesmo tempo, é comum perceber em alguns interlocutores um olhar que diz “coitado, já só é professor”. Naturalmente, sorrio para dentro.

 

Desde cedo que se apercebeu que aquilo que gostava era da área Internacional. Porquê este gosto?

A minha família é bastante internacional. Além disso, esse apego talvez também venha de em pequeno ter andado na Escola Francesa. Pode parecer que não tem muita influência, mas, na altura, havia uma diferença grande entre a escola privada e a escola pública, do ponto de vista da abertura ao mundo (daquilo que, de forma mais bonita, se pode dizer “mundividência”). Esta diferença atenuou-se muito desde então. No final da quarta classe, acabei por ir para uma escola pública, porque o meu pai achou que eu estava a ficar muito copinho de leite (risos). Lidei com um mundo diferente e estou certo de que foi isso que reforçou muito em mim o acreditar na democracia e na defesa de oportunidades iguais para todos, assim como numa obrigação cidadã e política de solidariedade com os vulneráveis. Na Escola Pêro Vaz de Caminha, ali na Rua do Rosário, era de tal forma gritante a diferença que me vi obrigado a ter o meu protetor, porque era um magricela, que deixava copiar. Também aí, com certeza, aprendi a vantagem da negociação. Com o tempo, com a sorte destas experiências, forjei a convicção forte de que o mundo é muito mais do que nós. Podemos fazer o que quisermos neste Portugal que eu adoro, mas ao mesmo tempo não somos “nada”, porque o que quer que aconteça lá fora vai ter um impacto imediato cá dentro. Infelizmente, basta olhar para o que está a acontecer, atualmente, na Ucrânia, e olhar, depois, para a insegurança que sentimos no dia-a-dia ou para a conta do supermercado.

 

Que lições é que a guerra na Ucrânia já nos deu?

Eu acho que quem tem aprendido mais lições é a Rússia, apenas, infelizmente, não é ainda suficiente. A Rússia cometeu o erro capital de olhar para a Europa como um conjunto de países velhos, um bocadinho gordos e muito burgueses e, sobretudo, incapazes de sacrifícios e de se unirem em torno do que quer que fosse. O elemento decisivo foi a Alemanha. Quando a Alemanha dá o sinal de que vai duplicar o orçamento da defesa e renunciar a prazo ao gás russo (e, no imediato, ao Nordstream 2) dá-se uma revolução mental no continente. A Europa é, de longe, quem mais está a pagar por isto. Tem sido um teste permanente ao projeto comum que temos e que se chama União Europeia. A Rússia fez com que tivéssemos de fazer das tripas coração e obrigou-nos a encontrar aquilo que nos une e a desvalorizar, pelo menos durante algum tempo, aquilo que nos possa dividir. Mas, pelo caminho, temos de acarinhar as democracias e não darmos nada por adquirido. É ver-se a subida eleitoral do extremismo na Suécia, em França ou, mais recentemente, em Itália.

 

Como é que olha para a saída do Reino Unido da União Europeia?

Acho que devemos ao Brexit, de alguma maneira, a existência de uma União Europeia mais robustecida. Gosto muito dos britânicos, admiro-os em não poucas coisas e, claro, não queria que eles saíssem. Porém, de alguma maneira, foi preciso que saíssem para que se percebesse algo de fundamental: quem sai não fica melhor (bem pelo contrário). No fundo, conseguiu demonstrar-se com esta aula prática, como nunca, o conjunto de virtudes da União Europeia: aquilo que até aí não tínhamos sido capazes de fazer. É por isso que mantenho que o Reino Unido antieuropeísta foi talvez uma das maiores prendas políticas (prenda involuntária, claro) que foi dada à União Europeia desde há muitos anos. Apesar de todos os defeitos e discussões, é melhor estar dentro da UE e trabalhar para resolver os nossos diferendos, do que sair, porque o custo é muito maior – e a solidão política manifesta.

 

Como é que a Escola do Porto da Faculdade de Direito tem vivido este momento de guerra com a Ucrânia?

A tradição do Internacional da Escola do Porto é a de olhar sempre para a realidade e acabar com as teorias esotéricas assentes num academismo exagerado, onde se pode fazer a disciplina sem estudar um único caso. Não é só a guerra da Ucrânia, aqui na Católica sempre estivemos atentos a tudo o que estava a acontecer. Mas, evidentemente, este é um caso esmagador, perigoso e destruidor. Através da Ucrânia estamos, afinal, a testar o nosso modelo de relações internacionais.

 

De que forma é que o estudo das Relações Internacionais é essencial?

Quando alguma coisa acontece lá fora repercute-se dez vezes em Portugal, duas ou três em França e uma nos Estados Unidos. Mas dez vezes em Portugal porquê? Porque nós somos um país médio pequeno e, portanto, muito aberto ao mundo. É por isto que é difícil governar em Portugal, estamos sempre a ter de gerir impactos que não dependem de nós. E tendo em conta este contexto, o que é que um exercício de inteligência obriga? A que procuremos conhecer cada vez mais e estudar, também, cada vez mais, e com especial destaque as questões internacionais. Curiosamente, noto que há agora mais estudantes a terem gosto pelo internacional.  Por exemplo, há sete milhões de pessoas em risco de morrerem de fome na Somália. Como é que se pode achar que isto não mexe connosco? Claro que sim, e o estudo que levamos a cabo é para interpretarmos de forma o mais competente possível a realidade internacional, seja patológica, seja como conjunto infindável de oportunidades e desafios. Tem de haver solidariedade, mas inteligente (não confundir com caridade, esse é outro capítulo), e é isso que tentamos transmitir aqui na faculdade.

 

“O International Studies Programme corresponde muito aos objetivos estratégicos da Católica.”

 

Estudar Direito na Católica é diferente porquê?

Acho que, passe a imodéstia evidente, somos mais ágeis do que outros a reagir e a pensar “produtos”. Não falo de uma relação de clientela, até porque não gosto nada dessa ideia, mas refiro-me a apresentarmos produtos de conhecimento. Temos essa capacidade e esse dever, também. Somos uma faculdade que tem o dever de manter uma atitude e prática humanistas e, por isso, mais atenta aos problemas que os nossos estudantes possam ter: quer sejam problemas relacionados com a aprendizagem do Direito, quer sejam de âmbito económico ou, no limite, até privado. Temos conseguido este equilíbrio: entre aquele que é o apoio que queremos dar aos nossos estudantes e aquilo que também tem de partir deles, enquanto adultos responsáveis que são. O equilíbrio é sempre uma marca da Católica. Confesso, pessoalmente, uma pequena obsessão com a melhoria da qualidade, com a diferenciação, dizendo aos estudantes de que sejam exigentes e aplaudam a exigência, que compreendam realidades diferentes, que pensem e desenvolvam e estimulem o pensamento crítico.

 

“Olho para a faculdade como uma casa de saberes.”

 

O International Studies Programme (ISP), um programa de mestrado inteiramente em inglês e do qual é coordenador, faz parte da estratégia da internacionalização da Escola do Porto da Faculdade de Direito?

O International Studies Programme corresponde muito aos objetivos estratégicos da Católica. Independentemente do apreço maior ou menor pela língua portuguesa ou à maior ou menor fluência, temos de ensinar mais conteúdos em inglês – esta é a língua franca do séc. XXI. Só estaremos, verdadeiramente, internacionalizados quando recebermos pessoas de fora e conseguirmos conhecê-los, respeitá-los e compreender as suas idiossincrasias. Com isto não estou a sugerir que percamos a nossa identidade ou que a ela renunciemos, até porque se assim for não seremos mais do que estrangeirados. A nossa identidade, temos de manter e até reforçar, com mais exigência e consolidando a capacidade de atrair pessoas de fora e continuando a construir um corpo docente forte e sólido. No âmbito do ISP, temos o projeto de desenvolver, rapidamente, um programa de estágios específico para que os estudantes tenham oportunidade de contactar com organizações internacionais ou outras entidades que toquem o internacional. Estamos, também, a promover a interdisciplinaridade, orientados por esse clichê tão sábio de que “quem só sabe de Direito, nem de Direito sabe”. Lançamos já, também, os International Studies Programme Dialogues, que só neste semestre trazem à Católica dez oradores dos mais qualificados, com temas e leituras do mundo muito diversos. Queremos dar aos nossos alunos a possibilidade de alargarem horizontes para além da sala de aula (sem nunca desvalorizarmos esta), até porque é desta forma que concebo uma faculdade. A faculdade é uma casa de saberes ou não é faculdade.

 

“Nunca tive falta de esperança em Portugal. Somos um país prestigiado na União Europeia.”

 

No final da sua licenciatura também foi um estudante internacional. Estudou durante um ano em Nice. Foi um ano marcante para si?

Imagine que durante um ano vai para uma cidade fantástica estudar só aquilo de que mais gosta. Foi o que me aconteceu. Não tive de escolher as matérias de que gostava menos. Eu gostava de tudo e por isso foi um ano que me marcou muito. Estava a estudar, de forma intensiva, exigente e exclusiva, Direito Internacional e Direito Europeu. Foi talvez o ano que me caiu mais fundo na minha vida, do ponto de vista da aprendizagem. Aprendi sem parar. Também, tudo isto foi vivido na altura da entrada de Portugal nas Comunidades, hoje União Europeia. Nestes dias, é difícil explicar isto, mas havia um fosso tão, mas tão grande entre Portugal e o resto da Europa. Lutávamos bravamente para nos desenvolvermos e a Europa estava a muitos mais quilómetros de distância do que a distância física. Deparei, por exemplo, com métodos de ensino e com uma abordagem muito diferente daquilo que conhecia.

 

Como é que olha para Portugal?

Somos um grande país, e não padeço de qualquer cegueira nacionalista. É bom não esquecer que estamos nisto há quase novecentos anos. Conseguimos ultrapassar coisas muito duras: o povo português tem uma capacidade de adaptação grande, e uma resiliência (palavra muito na moda) acima da norma. Tem sabido aguentar-se e crescer, tem sabido desenvolver-se e criar oportunidades. Por exemplo, o que estamos a fazer na área do comércio externo é muito importante. São as pessoas, sobretudo. As empresas têm tido a capacidade de se reinventar, de se modernizar e de pensar de forma diferente. Também por isso, nunca tive falta de esperança em Portugal. Somos um país prestigiado na União Europeia, acho aliás que a nossa “dimensão” na Europa e noutras esferas é maior do que o “tamanho” do país.

 

Enquanto investigador, que área do globo destacaria como de grande interesse para analisar?

Eu, hoje, olharia muito para o Indo-Pacífico. Acho que é a área mais excitante, onde muita da nossa história coletiva se vai decidir. O mapa já é agora mais oriental, o futuro vai passar por essa região. É no Indo-Pacífico que as peças se estão todas a colocar, é lá também que, com inteligência, temos de nos “colocar” sem a mania das grandezas. Por outro lado, nunca esqueceria África, do Magrebe à África do Sul. Não esqueçamos: vão ser “em breve” (em menos de um século), o continente mais populoso e, com isso, desafios grandes como a sua grandeza.

 

“A abordagem da gastrodiplomacia mostra-nos como na política externa a gastronomia desempenha um papel de relevo.”

 

O que é que gosta de fazer nos seus tempos livres?

Gosto muito de ler e, também, gosto muito de cozinhar. Gosto, por outro lado, de estudar a gastronomia como expressão de cultura. Tenho, portanto, o sonho de finalmente terminar o livro sobre História Europeia da Gastronomia em que me lancei. Tenho é receio que se trate de uma espécie de obras de Santa Engrácia.

 

Porquê o gosto pela gastronomia?

Conheço muitas cozinhas, tive essa sorte. Defendo a abordagem da gastronomia como cultura. No mestrado, há uma disciplina que se chama Artes, Direito e Relações Internacionais, e uma das sessões é dedicada à gastrodiplomacia. Aí se demonstra que, na política externa, a gastronomia tem um papel de relevo. Um bom exemplo disto é o couscous royal. É um prato do Magrebe, reivindicado (pelo menos) pela Argélia e por Marrocos. Estes dois países não se apreciam muito, por motivos históricos que aqui não interessa desenvolver. Apesar disto, estes dois países conseguiram chegar a um acordo. Qual foi o acordo? A apresentação de uma candidatura comum do couscous como património imaterial da humanidade. Esta relação entre a gastronomia e as relações internacionais é, lá fora, estudada nas faculdades de direito e de relações internacionais. Gostava muito que, entre nós, mais pessoas se ocupassem disto, até porque competência não nos falta para essa reflexão (é pensar-se, por exemplo, em Bento dos Santos).

 

29-09-2022